Para os cristãos católicos, a cruz e o perdão deveriam andar juntos. Ambos nos apresentam sinais de sofrimento, tanto para o crucificado quanto para o perdoado.
Anselmo de Cantuária, arcebispo de Cantuária entre os anos de 1093 e 1109, ficou conhecido como Anselmo de Aosta por conta de sua cidade natal e também como Anselmo de Bec em razão da localização de seu mosteiro. Foi um monge beneditino, filósofo e recebeu o título de prelado da Igreja. Chamado de fundador do escolasticismo, Anselmo exerceu enorme influência sobre a teologia ocidental e é famoso principalmente por ter criado o argumento ontológico para a existência de Deus e a visão da satisfação sobre a teoria da expiação dos pecados.
A teologia de Anselmo Cantuária nos mostra um espírito inovador mesmo no século XI, ao investigar seus escritos teológicos encontramos uma doutrina tradicional da redenção e da encarnação.
Anselmo defende a ideia de que a morte de Cristo tem o fundamento do perdão e que todos nossos pecados foram perdoados diante da cruz, cita pressupostos totalmente questionáveis como os “direitos do diabo”, pois insatisfeito com a perspectiva “Christus victor” (“Cristo é o Vencedor”) onde o maior preço já foi pago, fala também sobre a dogmática protestante onde procuram ordenar os elementos da salvação. Para ele, toda trajetória da salvação está fundamentada na justiça e na retidão sem desvios de Deus refletindo sobre esse aspecto.
Neles se diz que, na redenção, Cristo eliminou um decreto, um título de dívida escrito contra nós, e cravou-o na cruz (Col. 2, 14) e, vencendo os principados e potestades, despojou-os e os expôs publicamente ao desprezo (como nos desfiles triunfais romanos, nos quais os chefes vencidos eram ridicularizados ante a multidão).
Os “direitos do diabo” sobre a humanidade
A ideia de que o diabo tivesse certos “direitos” sobre a humanidade que a ele se sujeitasse, não era bem compreendido por Anselmo, muito menos a noção de Deus ser obrigado a respeitar esses direitos. A interpretação tradicional era a de que, desde o pecado de Adão, o diabo tinha adquirido direitos sobre o homem decaído; direitos “escritos” que o próprio Deus respeitava e que só podiam ser revogados se Satanás, talvez por engano, se lançasse contra um homem inocente, sem pecado (Cristo), fora de seu legítimo domínio.
Nesse sentido, está a intocável autoridade de Agostinho: vigorava contra todos nós o decreto conquistado pelo diabo, que possuía àqueles a quem enganara. Ao se derramar o sangue sem pecado, foi abolido esse quirógrafo, a caução do pecado. (AGOSTINHO, CCL 0284, sermão 229E).
São Leão Magno, papa e doutor da Igreja (440 d.C), explica com detalhe essa visão, como Cristo ludibriou o diabo e, como se diria popularmente, “cavou” um pênalti e o diabo “caiu como um patinho”. Cristo vem ao mundo como homem, escondendo sua divindade e engana o astuto inimigo. Cristo nasce como todo mundo, chora como qualquer bebê, é circuncidado e levado ao templo para que se cumpra o preceito da purificação legal. O diabo percebe também sua infância e crescimento normal, pensando que pode ofendê-lo, agredi-lo e matá-lo, sem se dar conta de que Ele não tem parte no pecado e não está incluído no quirógrafo.
Encontramos ecos do drama do “direito do diabo” ao longo de toda a Idade Média, como na popularíssima lenda de Teófilo, contada por Gonzalo de Berceo (c.1198-c.1274) (BERCEO, 2010). Nas diversas versões medievais do Teófilo, é a Virgem Maria quem resgata o quirógrafo, no melhor estilo Auto da Compadecida, no qual o diabo se queixa de que assim não vale: “Ela termina desmoralizando tudo”.
A vitória de Deus sobre o diabo
Mas quem poderia supor que uma ideia teológica da velha patrística iria, em estrondoso sucesso, conquistar o século XXI e render, em seu fim de semana de estreia nos EUA, 65,5 milhões de dólares na versão cinematográfica de As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda Roupa, de C. S. Lewis (LEWIS, 2010).
Todos conhecem o enredo em que a feiticeira adquiriu direito de posse sobre Edmundo depois de tê-lo seduzido e o induzido a trair seus irmãos. Direito que Aslan (alegoria para a pessoa de Cristo) reconhece. Aslan diz à feiticeira que a ofensa de Edmundo não fora dirigida a ela e pede a libertação do pecador. Começa o jogo da “Magia profunda” da aurora dos tempos onde a feiticeira recorda a Aslan o decreto escrito, gravado em letras muito profundas e até no cetro do Imperador de Além-mar (Deus Pai).
Aslan, então, em conversa privada com a feiticeira, se oferece em troca de Edmundo para ser sacrificado na Mesa de Pedra por ela e pelos seus seguidores. Nele, a feiticeira descarrega todo seu ódio, com torturas, zombarias e à morte. Nesse momento em que a feiticeira comemora seu triunfo, ela entende que não seria mais necessário dividir seus domínios com Aslan, entretanto, para enorme surpresa de todos, Aslan ressuscita. O próprio leão explica que há uma magia ainda mais profunda, anterior à aurora dos tempos e desconhecida pela feiticeira, segundo a qual matar uma vítima inocente implica a perda do direito do quirógrafo.
Diálogos e questionamentos de Anselmo
O Cur Deus homo (CDH) é um diálogo entre Boso e Anselmo, escrito, ao que tudo indica, entre 1094 e 1098 e considerado uma das mais extensas obras de Anselmo. No texto, já no início que podemos chamar de prefácio, Anselmo lança seu manifesto: apresentar argumentação racional, que prove por razões necessárias que é impossível a qualquer homem salvar-se sem Cristo, que o Verbo devia se encarnar.
Entre outros argumentos, Anselmo escreve que não se trata de chegar à fé pela razão, mas, a partir da fé, atingir as razões. Escreve também que a necessidade (ratione vel necessitate) pela qual Deus se fez homem e, pela sua morte, deu vida ao mundo.
Algumas das argumentações trazem elementos plausíveis e outros nem tanto. Boso questiona por que essa libertação, trazida por Cristo, é chamada de redenção e de que cativeiro se trata. De fato, falar em Cristo “redentor” e “redenção” pressupõe um cativeiro (uma comparação que podemos usar é a atitude redentora da Princesa Isabel na História do Brasil).
Seja como for, Satanás não tem direito de posse sobre o homem e o “decreto” citado em Col. 2, 14 não se refere ao demônio, nem a um domínio seu sobre o homem, mas a Deus, que impõe ao pecador a servidão do pecado. Sim, Deus é liberdade, mas essa liberdade não pode contradizer aquilo que compete a Deus.
O fato de suportar todo o sofrimento da cruz por Jesus, filho de Deus, mostra a toda a humanidade que a cruz e o perdão dos pecados da humanidade são consequência do amor sem igual de Deus pela humanidade. Ele nos mostra também que é possível passar pela vida terrena vencendo o pecado e além disso ele nos devolve a esperança da salvação e da vida eterna.
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